quarta-feira, 31 de março de 2010

poetas

melhor 'matador' da Espanha

Fotos publicadas no jornal
EL PAIS / Espanha
Adrien Brody e Manolete

INCRÍVEL SEMELHANÇA

O ator Adrien Brody em uma cena do filme O pianista e,
à direita, o toureiro Manolete em foto de arquivo.

Nascido no Queens, subúrbio de Nova York, Adrien Brody tem 33 anos, três a mais do que a idade com que morreu, em 1947, Manuel Rodríguez Sánchez, o legendário Manolete. Ganhador do Oscar de melhor ator por sua interpretação em "O pianista", Adrien é um americano típico, sem qualquer intimidade com touros e touradas, o que levou alguns críticos espanhóis mais radicais (e patriotas) a escreverem contra a escolha do ator. No entanto, sua semelhança física com o biografado é tão grande que fica difícil não concordar com a decisão do diretor holandês Menno Meyjes, um obcecado que há quase 20 anos persegue a idéia de filmar a história dramática de um dos toureiros mais famosos de todos os tempos.

Para não fazer feio, o nova-iorquino passou o mês de março em Sevilha praticando com um profissional, o toureiro Juan Antonio Ruiz, conhecido como Espartaco. No início de abril, na locação onde se encontrava a equipe de filmagem, em Salamanca, o jornal espanhol "El País" surpreendeu Adrien Brody treinando atrás do trailer, com Espartaco a lhe orientar os passos e meneios enquanto seu irmão, Francisco Ruiz, fazia o papel de touro. Os três brincavam e riam, e o toureiro comentou que o fato de não falarem inglês e o ator não saber espanhol não atrapalhava nada, pois se entendiam perfeitamente por gestos.

"Ninguém poderia ensiná-lo a ser um toureiro, mas podemos prepará-lo para representar um", comentou Espartaco. "Estamos tentando fazer com que ele tenha uma convivência com o mundo das touradas, que entenda como vivemos, como é o nosso entorno, nossa vida familiar, nossas preocupações e nosso medo. O medo é muito importante; e ele compreendeu essa expressão da verdade, do que realmente sente um toureiro", acrescentou Espartaco na entrevista dada a Elsa Fernández-Santos, do "El País", em 8 de abril último. A seu ver, a característica principal do biografado, conhecido como homem sóbrio e discreto, era o pudor: "Isso foi fundamental para Manolete. Ele deu sua vida por algo", completou.

Além de ter passado um tempo no campo, junto a vacas e bois, e treinando com toureiros, o ator também pesquisou na internet, em livros e fotografias, assistiu a muitos vídeos e escutou centenas de histórias e anedotas sobre o tema, com o fim de ganhar mais segurança para interpretar Manuel Rodríguez Sánchez. Apelidado de Manolete, diminutivo de Manuel, este nasceu em Córdoba em 1917 e morreu em Linares, na madrugada de 29 de agosto de 1947, horas após ser derrubado na arena por uma chifrada na coxa direita, dada pelo quinto touro daquela 'corrida', que tinha o nome de "Islero".

Penélope Cruz

Penélope Cruz será Lupe Sino,
a namorada de Manolete,
definida como "um terço Ava
Gardner, um terço 'Carmen' e
um terço problema".
(foto: Reuters)

Um drama em flashback

O filme, que mostra os últimos sete anos de vida do mito espanhol, começa pelo final, em 1947, com o protagonista viajando de Sevilha para Linares, onde morreu. Nesse trajeto — em que faz uma parada em Córdoba, sua cidade natal, para ver a mãe, Dona Angustias — ele recorda sua vida, especialmente a relação apaixonada e conflituosa com a bela atriz Lupe Sino, morena clara de olhos verdes, que será interpretada por Penélope Cruz. Republicana perseguida pela polícia do general Franco, Lupe, segundo os cronistas da época, já havia se relacionado com outros toureiros, e a mãe de Manolete se opunha ferozmente ao romance dos dois. A tal ponto que, embora ela estivesse na arena onde seu amante foi ferido de morte, não permitiram que a moça se aproximasse dele em seus últimos momentos, para evitar que se casassem.

"Era uma mulher repudiada pelo entorno do toureiro, sobretudo por sua mãe, e não lhe perdoavam ser de família republicana e ter aspirações a atriz", destaca Andrés Vicente Gómez, responsável pela produção. A perseguição a Lupe foi tamanha que a jovem teve de se exilar no México após a morte do toureiro, seu protetor, já que os franquistas tentaram prendê-la em várias ocasiões. "Numa das vezes, o próprio Manolete intercedera junto ao general Franco para livrá-la da prisão", contou Gómez, acrescentando que o filme será uma história de amor, dramática como todas as histórias de amor que terminam mal, mas também "una película muy taurina", ou seja, com todo o cuidado em acertar nos detalhes para não decepcionar os milhões de fãs de touradas, que consideram uma 'ousadia-quase-sacrilégio' este filme estar sendo feito por um diretor holandês com protagonista americano.

Manolete e Lupe

Manolete e Lupe Sino, com
o retrato de Dona Angustias
ao fundo, no traço dos
cartunistas Idígoras e Pachi

Co-produção da Espanha e Reino Unido, orçado em cerca de 20 milhões de euros e com uma equipe técnica de mais de 120 pessoas, segundo a empresa Lola Films, "Manolete" é, para seu produtor, a tentativa de "tornar mais conhecido, em especial para as novas gerações, este grande mito que não só foi o maior toureiro da história como um homem de personalidade tão especial que se teria destacado igualmente em qualquer outra atividade que empreendesse". O produtor espanhol recordou como Orson Welles um dia lhe revelara que, quando levou Manolete a Hollywood, as pessoas, sem saber quem ele era, viraram a cabeça à sua passagem. "Olhavam muito mais para ele do que para mim", afirmou Welles, segundo revelou Gómez em entrevista recente na Espanha.

Foi em 1989, durante a filmagem de "O sonho do macaco louco", do cineasta Fernando Trueba (com Jeff Goldblum e Miranda Richardson), que o então roteirista Menno Meyjes passou a se interessar pela figura de Manolete, e começou a pesquisar sobre ele. Nascido na Holanda mas radicado nos Estados Unidos, onde assinou os roteiros de "A cor púrpura", de Steven Spielberg, e de "Os caçadores da arca perdida", de George Lucas, entre outros, ele finalmente realiza seu alentado projeto como roteirista e diretor de "Manolete". Não se trata, porém, de sua estréia como cineasta. Meyjes já tem no currículo dois filmes em que assina a direção além dos roteiros: "Max" e "Martin child", ambos protagonizados por John Cusack.

A tarde de 28 de agosto de 1947

Manolete

Manolete

Segundo o Portal Taurino, site da internet que traz todas as informações sobre touros, toureiros e touradas, além de Manolete participaram daquela 'corrida' fatídica Rafael Vega de los Reyes, o "Gitanillo de Triana", e Luis Miguel Dominguín. Os três se alternaram na arena, e diz também o Portal — e eu traduzo aqui para o português — que, quando Manolete voltou, Gitanillo e Dominguín já tinham cortado uma orelha cada um. Isso significa que haviam toureado melhor do que Manolete, que na primeira exibição não agradou ao público. Quando ele retorna à arena para enfrentar o touro miúra "Islero", o quinto da tarde, se esforça por dar o melhor de si e apagar a má impressão anterior. Após uma atuação à altura de seu prestígio, começa a matar bem devagar o touro, com a muleta (pau que encobre a capa) junto à cintura, e então o touro lhe enfia o chifre na coxa direita. O toureiro começa a sangrar violentamente.

Os assistentes levantam Manolete e erram o caminho para a enfermaria, levando-o em direção ao pátio de cavalos. O ferido chega à enfermaria sete minutos depois da chifrada. O médico da Plaza de Toros, Fernando Garrido Arboledas, declara Manolete vítima de uma "ferida de chifre de touro situada no Triângulo de Scarpa, com 20 centímetros de comprimento de baixo para cima e de dentro para fora (...) com ruptura da veia safena, e contornando a região muscular da artéria femoral".

O toureiro diz que não sente a perna, enquanto fuma um cigarro. Às 23h, ele é trasladado ao Hospital de Linares, e o médico de Las Ventas, Luis Giménez Guinea, chega de Madri e autoriza a transfusão de um soro de plasma com o objetivo de regenerar o sangue do ferido. Às 5h07 de 29 de agosto, Manolete pronuncia suas últimas palavras diante do Dr. Luiz Giménez Guinea: "Que desgosto vou dar à minha mãe! Don Luiz, eu não vejo, não vejo nada".

O Portal Taurino informa ainda que o ensangüentado "traje de luces" de Manolete foi levado para exibição no Museu Taurino de Madri, e a cabeça do touro "Islero" colocada no Museu Taurino de Sevilha.

Um tema para poetas

Muitos foram os poetas espanhóis, especialmente os da Andaluzia, que se inspiraram nas 'corridas de toros'. O mais famoso dentre eles é o granadense Federico García Lorca (1898-1936), que em 1935 homenageou um toureiro tragicamente morto com seu longo e comovente 'Llanto por Ignacio Sánchez Mejías', mais tarde musicado. Muito antes, o cordobês Luis de Góngora (1561-1627) escrevera 'De unas fiestas en Valladolid', enaltecendo a 'plaza', os touros e os toureiros, o que também fez Francisco de Quevedo (1580-1645) em seu poema 'A la fiesta de toros y cañas del Buen Retiro, en día de grande nieve'. José Perez de Montoro (1627-1694) escreveu 'Definición de un toro herido', e Nicolás Fernandez de Moratín (1737-1780) 'Fiesta antigua de toros en Madrid'. José Zorrilla (1817-1893) prestou homenagem a 'El Picador', o toureiro a cavalo que, logo no início da 'faena', pica o touro com uma garrocha (haste de madeira com ponta de ferro farpeada). Até mesmo o tcheco Rainer Maria Rilke (1875-1926) poetizou a 'Corrida', verso escrito em Paris em 3 de agosto de 1907.

Dentre os brasileiros, quem se inscreveu belamente nesta tradição foi o pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), um dos maiores poetas de todos os tempos, que viveu na Espanha, inicialmente como vice-cônsul do Brasil em Barcelona, e era um apaixonado por touradas. Os qualificativos de discreto e sóbrio, atribuídos a Manolete, podem perfeitamente se aplicar ao brasileiro, que em 27 de outubro de 1987, numa entrevista ao jornal "A Tarde", de Salvador (BA), falou com emoção sobre o famoso toureiro, como se pode ler a seguir:

"É, realmente a corrida de touros é uma coisa extraordinária. Eu cheguei a Barcelona em 1947, e vi Manolete tourear duas vezes. Nesse ano, ele toureou em Barcelona duas vezes [antes de morrer] (...) e ele ainda ia tourear em Barcelona naquele ano, e nós tínhamos um amigo em comum que me ia apresentar a ele. Eu não conheci Manolete pessoalmente. Essa pessoa dizia que foi uma pena eu não o ter conhecido porque era um sujeito com quem eu ia me entender muito bem. Esse amigo me dizia que eu tinha deixado de conhecer uma pessoa de quem seria, certamente, um grande amigo, por causa do temperamento dele (...) retraído, calado".

E prosseguiu nosso poeta: "Era um homem de origem humilde, o pai dele foi um toureiro, de forma que Manolete começou carregando pedra numa estrada. Agora, ele era de uma curiosidade intelectual enorme. Dizem que quando ele se encontrava com dois escritores, por exemplo, ou qualquer sujeito que estava falando de um assunto de que ele não entendia, ele não dava uma palavra. Ficava curioso, ouvindo tudo, e não dizia besteiras. Ele procurava suprir aquela falha de cultura — que ele não teve, coitado, porque foi obrigado a trabalhar — por essa curiosidade intelectual. Era um homem extraordinário".

Mais tarde, o embaixador João Cabral de Melo Neto morou em Sevilha, cidade que amava profundamente. Em seu livro "Poemas Sevilhanos", publicado pela Nova Fronteira em 1992, ele escreveu alguns poemas sobre touradas, como 'Touro andaluz' ou 'A Praça de Touros de Sevilha', e dedicou outros a 'matadores' famosos, tais como Belmonte, Galitto, Manolo Gonzáles e Litri. Mas logo no primeiro poema do livro, dedicado ao amigo Antônio Houaiss, Cabral analisa as diferentes formas de tourear dos mais renomados toureiros, e conclui que o melhor deles era Manolete, apelidado entre os espanhóis de "El Monstruo" pela maneira seca, sem firulas, com que enfrentava o touro:

Alguns toureiros

Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madri, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

Tempos depois, João Cabral revelou em entrevista ao jornal "Folha de S. Paulo", publicada em 22 de maio de 1994, que a arte de Manolete lhe ensinara a eliminar da poesia todos os excessos, como se lê a seguir: "Naquele poema 'Alguns toureiros' eu digo que aprendi com Manolete a não poetizar o poema. Porque esse é o problema de muito poeta: é que ele faz um poema poético. Quer dizer, faz um poema a partir de elementos já convencionalmente poéticos. Ele perfuma a flor. É como você plantar uma rosa e depois achar que a rosa não está cheirando o suficiente e aí pôr, em cima da rosa, perfume de rosas para ela cheirar mais — ou seja, perfuma o poema".

E encerro minha reportagem sobre cinema, touradas e poesia com mais uma amostra da arte essencial deste pernambucano incomparável, dedicada ao personagem principal do texto:

Manolete

Manolete

Lembrando Manolete

Tourear, ou viver como expor-se;
expor a vida à louca foice

que se faz roçar pela faixa
estreita de vida, ofertada

ao touro; essa estreita cintura
que é onde o matador a sua

expõe ao touro, reduzindo
todo o seu corpo ao que é seu cinto,

e nesse cinto toda a vida
que expõe ao touro, oferecida

para que a rompa; com o frio
ar de quem não está sobre um fio.

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